Contra o crime organizado, o bem articulado
Enquanto o crime organizado opera com eficiência brutal na Amazônia – mobilizando logística, tecnologia, inteligência financeira e redes territoriais –, o “bem”, que poderia ser o contraponto ao oferecer valor com floresta em pé, biodiversidade e conhecimento tradicional, caminha de forma ainda dispersa, com iniciativas relevantes que, apesar dos avanços, carecem de maior coordenação e escala. O contraste é evidente. De um lado, estruturas criminosas bem financiadas, com planejamento e incentivos claros. De outro, uma série de esforços legítimos que enfrentam o desafio da informalidade e da invisibilidade.
Nos últimos três anos, o crime organizado movimentou mais de R$350 bilhões no Brasil, segundo estimativas reunidas pelo Ministério da Fazenda. Apenas no setor de combustíveis, o Estado deixa de arrecadar quase R$30 bilhões por ano devido a práticas ilegais como adulteração e sonegação. Esses números revelam uma realidade desconcertante: o crime opera com escala, previsibilidade e eficiência. Enquanto estruturas ilegais exploram falhas regulatórias com agilidade, as soluções sustentáveis ainda encontram um ambiente institucional fragmentado, com entraves burocráticos e dificuldade de acesso a financiamento. O paradoxo se impõe: a ilegalidade se estrutura como negócio, enquanto o desenvolvimento justo e sustentável depende, em grande parte, de iniciativas em processo de amadurecimento.
O crime tem ganhado força porque oferece estabilidade, remuneração e uma forma de pertencimento. Grilagem, mineração ilegal e desmatamento operam em rede, com logística eficiente e incentivos perversos. Diante dessa engrenagem bem estabelecida, é hora de mudar a lógica. Cadeias de sociobiodiversidade, sistemas agroflorestais e produtos florestais não madeireiros precisam deixar de ser tratados como experiências alternativas e integrar, de forma robusta, uma política consistente de desenvolvimento com floresta em pé.
Não falta potencial. A bioeconomia amazônica reúne ativos de altíssimo valor: ingredientes únicos da floresta, práticas regenerativas, saberes ancestrais, produtos com identidade, rastreabilidade e história. Mas esse potencial ainda não ocupa o lugar que poderia no centro das dinâmicas econômicas nacionais e internacionais. Há um abismo entre o que é possível realizar e o que efetivamente conseguimos entregar hoje.
Nem mesmo produtos emblemáticos da Amazônia, como a castanha-do-brasil, conseguem hoje acessar mercados internacionais com fluidez. A combinação de regras sanitárias rígidas, burocracia, infraestrutura precária e desorganização das cadeias produtivas acaba dificultando o aproveitamento de oportunidades existentes. O contraste com a Bolívia é ilustrativo: mesmo com menor extensão territorial e biodiversidade, o país exporta até três vezes mais castanha que o Brasil, graças a uma cadeia mais coordenada e eficiente.
O caso da castanha mostra que, mesmo quando há demanda e produto de qualidade, a ausência de uma estrutura mínima – logística, documental e comercial – compromete a viabilidade dos negócios. É um exemplo claro de como fatores invisíveis podem pesar mais do que os tangíveis e de como, sem investimento em infraestrutura pré-competitiva, o potencial da bioeconomia continuará limitado por barreiras que só a ação coletiva pode superar.
Essa infraestrutura, no entanto, não é feita de concreto ou aço. É invisível – e, por isso mesmo, muitas vezes negligenciada. São os dados, os protocolos, as certificações, a governança, o acesso a crédito, a assistência técnica, a capacitação, a logística que conecta pontos remotos da floresta aos centros urbanos. Por não gerarem retorno imediato, poucos estão dispostos a assumir esse tipo de risco estrutural. Ainda assim, há exceções importantes que vêm apostando na construção dessas bases mesmo diante de incertezas logísticas, regulatórias e operacionais. Enfrentar a “complexidade amazônica” exige presença constante e compromisso de longo prazo.
É exatamente aqui que mora a inovação e a disposição para assumir riscos. Financiar aquilo que ainda não gera retorno, mas que abre caminho para que o retorno seja possível no futuro. Sustentar o tempo necessário para que um produto nativo amadureça, uma cooperativa se estruture, uma startup florestal teste seu modelo. Bancar os processos que, embora lentos e complexos, constroem viabilidade de longo prazo.
O capital paciente pode e deve ser o cimento silencioso dessas estruturas, atuando como designer de soluções a serem escaladas pelos setores público e privado. Ocorre que, com frequência, o impacto é mais associado ao resultado final do que ao processo que o tornou possível. Iniciativas como a inauguração de uma fábrica ou a exportação de um produto ganham destaque – e com razão –, mas frequentemente recebem atenção sem que o trabalho de base, necessário para sua viabilização, seja igualmente valorizado. Sem investimento consistente nas etapas iniciais, como planejamento, capacitação e governança, essas soluções tendem a permanecer como experiências isoladas, difíceis de replicar em escala.
Há sinais encorajadores de que esse “bem articulado” começa a ganhar forma. Redes como o Origens Brasil conectam produtos como castanha, açaí e cumaru a mercados com identidade territorial, remuneração justa e transparência. Aceleradoras como a AMAZ vêm apoiando empreendedores da floresta com capital paciente e conhecimento técnico. Iniciativas como o Fundo Kawá buscam destravar o acesso a crédito por meio da assistência técnica estruturada a produtores de cacau, integrando inclusão financeira e conservação produtiva. O movimento Baniwa, com sua cadeia da pimenta no noroeste amazônico, construiu uma jornada de valorização cultural, comercialização com rastreabilidade e envolvimento comunitário. Estão também florescendo biofábricas, redes de incubação e mecanismos de financiamento híbrido em projetos liderados por organizações como FAS, Idesam e Certi. A Plataforma Parceiros pela Amazônia (PPA) tem contribuído com diagnósticos relevantes sobre gargalos sistêmicos, enquanto estudos do Amazônia 2030, Sitawi e Conexsus apontam caminhos concretos para articular recursos filantrópicos e financeiros na consolidação de um ecossistema de bioeconomia que gere impacto.
Mesmo com avanços importantes, o campo ainda carece de articulação sistêmica e de mecanismos que transformem boas práticas em soluções replicáveis e sustentáveis. E, com a aproximação da COP-30, o risco se acentua. A multiplicação de eventos, redes, fóruns e grupos de trabalho pode parecer sinal de engajamento – e de fato é. Mas também pode se tornar ruído. Sem coordenação, clareza de papéis e visão compartilhada, essa profusão de agendas gera sobreposição, competição por atenção e recursos e até mesmo desmobilização.
Destravar o valor da floresta exige tempo, confiança, articulação e investimento em caminhos comuns. Exige ousadia para atuar onde os mercados ainda não chegam. A boa notícia? Isso está ao nosso alcance. Temos biodiversidade, conhecimento, criatividade e gente comprometida. É preciso transformar iniciativas exemplares em políticas públicas, conectar capital filantrópico e investimento privado a estratégias de longo prazo e fortalecer as pontes entre comunidades, empreendedores e mercado.
Governos podem criar marcos regulatórios e mecanismos de incentivo à inovação socioprodutiva. Empresas podem assumir compromissos mais robustos com cadeias sustentáveis. E a filantropia tem espaço para ousar mais, investindo em governança, dados, capacitação e assistência técnica com paciência e estratégia. O bem articulado não será fruto do acaso, mas de escolhas deliberadas. Fazer o certo dar certo exige organização e compromisso coletivo com um novo modelo de desenvolvimento para o país.