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Sistemas alimentares e COP30: bandeira e legado para o Brasil

Mudar a produção, o consumo, a distribuição e o descarte dos alimentos é condição para reduzir emissões, manter a floresta em pé e garantir comida no prato para todos
Renata Piazzon,
14.10.2025

Renata Piazzon e Lívia Pagotto

Em um contexto de escalada de conflitos geopolíticos, “a única guerra de que todos podem sair vencedores é a que travamos contra a fome e a pobreza”. Foi o que enfatizou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva em seu discurso na Conferência da ONU, no mês passado, em Nova York, ao mencionar as 670 milhões de pessoas famintas no mundo e as cerca de 2,3 bilhões que enfrentam insegurança alimentar. Além de um direito humano, a comida no prato de todos é parte fundamental do enfrentamento à crise climática.

A transformação dos sistemas alimentares para as pessoas, a natureza e o clima – que passa pela restauração de áreas degradadas, aumento da escala de práticas regenerativas e mobilização de políticas públicas e de financiamento – é condição para se reduzir emissões, fortalecer a resiliência climática, proteger a biodiversidade e garantir alimentos saudáveis e acessíveis. Como um dos maiores produtores de alimentos do mundo e com quase metade do território formado pela Amazônia, o Brasil tem uma posição estratégica nessa agenda.

Segundo a FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura), a produção de alimentos responde por um terço das emissões globais, embora a relação entre os dois temas não seja tão reconhecida e implique em inúmeros dilemas que temos muito ainda a investigar (por exemplo, entre segurança alimentar e segurança/transição energética). No Brasil, a discussão ganha ainda mais peso: ao contrário de boa parte do mundo, em que a produção de energia domina o debate climático, aqui são o uso da terra e a agropecuária os principais responsáveis pelas emissões.

O Brasil tem várias soluções para transformar a forma como produz, distribui e consome alimentos, mas é preciso escalá-las, o que só é possível com a força da indução das políticas públicas e o engajamento do setor privado. Nesse contexto, a filantropia pode cumprir um papel importante ao criar pontes, reduzir assimetrias de informação, fomentar experimentações, destravar políticas públicas e demonstrar que novas práticas são viáveis e, sobretudo, transformadoras.

Essa mudança exige regeneração do ecossistema e inclusão, e é nessa intersecção que está a contribuição do Instituto Arapyaú e da rede Uma Concertação pela Amazônia. Há quase duas décadas, o instituto atua no Sul da Bahia e, mais recentemente, no Pará, no fortalecimento da cadeia do cacau sustentável – com iniciativas que vão desde a melhora da qualidade da amêndoa e ampliação da assistência técnica ao apoio a inovações nos mecanismos de crédito.

Em geral cultivado em sistemas agroflorestais (que mitigam as alterações climáticas e conservam a biodiversidade), o cacau brasileiro é produzido principalmente por agricultores de pequenas propriedades, o que contribui para a geração de renda e soberania alimentar. No ano passado, o instituto ajudou a conceber o Kawá, o maior fundo brasileiro para o custeio do cacau na agricultura familiar, ampliando o impacto econômico, social e ambiental.

A experiência com o cacau serviu como ponta de lança para uma outra frente nessa agenda. Em parceria com uma organização do setor privado, o Arapyaú mapeou ingredientes amazônicos em uma iniciativa que tem como norte a promoção da diversidade socioambiental, o fortalecimento das cadeias de abastecimento e o ganho de escala da bioindústria de alimentos.

Em função da expansão rápida e desorganizada da pecuária e de monoculturas nos últimos 40 anos, o modelo de produção de alimentos da Amazônia se tornou o principal vetor de desmatamento e de emissões de gases de efeito estufa no Brasil, além de se mostrar incapaz de garantir segurança alimentar na região. Para colocar a Amazônia em destaque no debate climático e agroalimentar global, especialmente no contexto da COP 30, a Concertação, em parceria com o iCS (Instituto Clima Sociedade), lançou este ano um relatório com recomendações para impulsionar uma transição justa e regenerativa dos sistemas alimentares na região. Com uma abordagem sistêmica, o documento – que vai virar um livro a ser lançado na COP – foi apresentado aos enviados especiais de agricultura e bioeconomia.

O relatório destaca vetores de tração que já operam em territórios amazônicos e apontam caminhos viáveis para impulsionar a transição, como o manejo tradicional da biodiversidade, a adoção de bioinsumos, a expansão de práticas agroecológicas, além da valorização da sociobiodiversidade local. Uma das principais frentes de ação é o fortalecimento da agricultura familiar e dos sistemas agroflorestais.
A articulação entre agricultura familiar e políticas como o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) e o PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar) tem se mostrado uma estratégia eficaz para garantir alimentos frescos e da sociobiodiversidade regional nos pratos da população, além de promover o desenvolvimento econômico local.

É preciso posicionar o território amazônico como centro das políticas públicas para uma transição justa e sustentável, com uma integração nas escalas federal, estadual e municipal. Desatar esse nó vai exigir também uma maior articulação entre políticas de ordenamento territorial, infraestrutura logística, abastecimento e segurança alimentar e nutricional, além do reconhecimento do papel estratégico das populações locais na construção de soluções. Incentivar a produção local e diversificada é uma forma eficaz de enfrentar a fome e, ao mesmo tempo, regenerar os ecossistemas e integrar a agricultura familiar nos circuitos formais da economia.

A transformação dos sistemas alimentares exige a construção de uma nova matriz de desenvolvimento rural e urbano, que valorize a produção local, proteja os ativos da natureza, gere renda e garanta segurança alimentar. Por ser um ponto de convergência entre política social, econômica e ambiental, essa agenda precisa se converter em bandeira do Brasil para a COP30 e também em legado – para o país e para o mundo. A transição alimentar começa na floresta que alimenta boa parte do planeta.

Lívia Pagotto é secretária executiva da rede Uma Concertação pela Amazônia e diretora institucional do Instituto Arapyaú.

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