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Movimentos em redes e paisagens

A fim de lidar com os desafios contemporâneos, propõem-se duas abordagens para a formação e o funcionamento dos movimentos em rede. Uma reconhece a organicidade e o caos desses movimentos, e sugere um método capaz de trazer maior eficiência. Outra é a abordagem de paisagem, que ilumina caminhos entre racionalidade e emoção para lidar com a complexidade de ambientes e de grupos tão diversos
Renata Piazzon,
19.10.2022

A fim de lidar com os desafios contemporâneos, propõem-se duas abordagens para a formação e o funcionamento dos movimentos em rede. Uma reconhece a organicidade e o caos desses movimentos, e sugere um método capaz de trazer maior eficiência. Outra é a abordagem de paisagem, que ilumina caminhos entre racionalidade e emoção para lidar com a complexidade de ambientes e de grupos tão diversos

Por Fernanda Rennó, Renata Piazzon, Thais Ferraz e Roberto S. Waack*

Para enfrentar os grandes desafios contemporâneos, a sociedade vem se reinventando e se organizando de diferentes maneiras. Uma delas tem sido os movimentos em rede, baseados em uma forte articulação entre pares e ímpares. Vive-se um momento de tamanho estresse social, ambiental e cultural que, se cada um fizer a sua parte, já não é mais suficiente. Entendemos que só há como avançar em alguns temas de forma coletiva. Daí a importância dos movimentos. Essa forma de agir busca ultrapassar as tradicionais hierarquias de poder, e traz para sua essência a importância das conexões entre diferentes atores e diferentes temáticas, ou seja, se baseia em um olhar sistêmico e abrangente, que é seu grande diferencial.

O sucesso dessas iniciativas depende de uma visão sistêmica de mundo, robusta e audaciosa, capaz de enfrentar os complexos desafios inerentes a esse tipo de articulação. Tais movimentos precisam ser pensados, desenhados e implementados considerando além do problema a ser resolvido, todo o contexto mais amplo (ambiental, social, cultural e político) no qual ele se insere.

Para isso, propõe-se a combinação de duas abordagens, que conseguem absorver as principais características e desafios desse tipo de movimento: a diversidade, a dinamicidade, a flexibilidade, a assertividade e a representatividade institucional. Uma abordagem que considera as fases de desenvolvimento e comportamento de grupos (baseada em teorias como as de Tuckman, Tannenbaum e Schmidt Continuum e Hersey e Blanchard’s Situational Leadership Model, entre outros), que reconhece a organicidade e o caos desses movimentos, mas consegue explicitar uma sequência, portanto um método, que pode trazer uma maior eficiência. A outra é uma abordagem de paisagem (Rennó), que ilumina caminhos entre racionalidade e emoção para lidar com a complexidade de ambientes e de grupos tão diversos.

A iniciativa Uma Concertação pela Amazônia é um bom exemplo de sucesso de movimentos em rede, e foi nela que as duas abordagens silenciosamente se encontraram pela primeira vez. A primeira delas explicita um padrão de desenvolvimento seguido por movimentos em rede, um trânsito contínuo e dinâmico entre quatro fases: formação (Forming), tormenta (Storming), normatização (Norming) e desempenho (Performing).

O primeiro passo é a formação do grupo (Forming), quando as pessoas se encontram e começam a interagir, muitas vezes ainda sem se conhecer. Essa fase tem um lado formal, um lado frio, muito potencializado pelas incertezas sobre os propósitos do grupo, sobre sua futura estrutura e sobre sua liderança. O impulso inicial para esse movimento de agregação é o fato de que essas pessoas têm um objetivo comum, um interesse comum, que neste momento é bastante amplo.

Quando esse grupo de pessoas começa a interagir, a expor suas ideias, muitas vezes não convergentes, acontece a chamada tormenta (Storming), surgem ambiguidades, contradições, conflitos, e isso pode ser mais ou menos tenso. Nesse momento, os indivíduos já reconhecem a existência do grupo, mas demonstram resistência em relação aos limites da individualidade.

É durante a tormenta que os membros medem forças, estabelecendo e testando uma espécie de hierarquia das relações dentro do grupo. Às vezes, esse ajuste não é fácil, pode levar tempo, pode ser doloroso. Trata-se de um momento crítico para a sobrevivência do movimento, pois pode resultar em desagregação. É a hora de verificar se a razão de existir do movimento supera as divergências.

Essa segunda fase tem uma característica que beira o caos, e deve ser assim mesmo, é uma fase em que os atritos aparecem, as arestas brotam e os limites, mais ou menos tênues, começam a ser necessários, limites que permitam que o movimento evolua sem deixar de lado a riqueza das diversidades entre seus membros, limites flexíveis, que buscam dar energia e sinergia para o movimento, sem dominá-lo.

Esses primeiros limites aparecem quando os integrantes se sentem mais próximos uns dos outros e as relações de confiança começam a se consolidar. Fruto de uma negociação, de consentimentos – não de consensos –, e de um pensamento convergente, nascem os primeiros princípios (Norming). Ao final deste estágio, a estrutura do grupo se torna mais sólida e capaz de assimilar um conjunto de expectativas que define qual deverá ser o comportamento, os princípios e as regras do jogo que pautarão as ações concretas dali para frente.

Aos poucos, o processo vai desenhando sua governança, que é fundamentada nos tipos de pessoas que estão ali, e que foram se conhecendo e se mostrando ao longo do tempo. Algumas são lideranças mais fortes, outras têm mais conteúdo, existem aquelas com uma capacidade de negociar, de pacificar. Esses diferentes perfis são importantes para a consolidação de uma visão de longo prazo e a definição das ações de curto prazo, que caracterizam a fase seguinte, de desempenho (Performance).

As pessoas juntam-se porque desejam resultados do movimento. A fase de desempenho caracteriza-se por essas entregas, baseadas nos princípios anteriormente definidos. Nessa fase, a estrutura do grupo passa a ser mais funcional e acordada, o grupo está coeso e a sua energia é canalizada nas tarefas a serem realizadas. Normalmente essas entregas são feitas por subgrupos temáticos de trabalho que, assim como o próprio movimento, vão se formando organicamente, naturalmente, por afinidades e desejos comuns. Os subgrupos são uma peça fundamental da engrenagem dos movimentos em rede.

Se todos os movimentos em rede seguissem essas etapas de forma linear, talvez tudo seria mais simples, mas, com certeza, também menos interessante. O que acontece na prática não segue uma linearidade. Os movimentos começam e se formam através dessas etapas, o que não significa que, ao chegarem na fase de desempenho, ninguém mais possa entrar (Forming) e/ou questionar (Storming) e/ou definir novas diretrizes (Norming) e/ou propor novas ações (Performing).

Essa forma de se organizar é dinâmica, ela começa seguindo esse fluxo, mas constantemente as fases se repetem e se atravessam, quando novos membros entram e atormentam, refazem princípios, criam-se novos, aparecem novos líderes, o contexto muda, as ações mudam.

Aplicação prática

Em 2020, diferentes e diversas pessoas interessadas pela Amazônia começaram a se juntar. O único critério para fazer parte dessa rede e o desafio comum que junta essas pessoas são o fato de terem algum interesse pela Amazônia (Forming). Hoje, a rede conta com mais de 500 lideranças. São representantes dos setores público e privado, academia, sociedade civil e imprensa reunidos em um espaço de diálogo democrático.

Existia e ainda existe uma ansiedade pela construção de uma visão – ou de visões de longo prazo que consigam inserir as Amazônias, no plural, dentro e no centro de um projeto de país (Storming). O objetivo comum da rede é desenvolver um novo modelo econômico capaz de conciliar de forma mais equilibrada o valor dos capitais natural e social com o chamado desenvolvimento econômico tradicional. A Amazônia é um campo único para conciliar a economia do clima, da biodiversidade e do valor da cultura dos povos originários e tradicionais.

Com o objetivo definido, os princípios básicos começaram a ser formatados, as bases, os pilares que sustentam e norteiam essa rede (Norming). Um desses pilares se pauta sobre a necessidade urgente de construir um modelo de desenvolvimento capaz de, ao mesmo tempo e de forma equilibrada, conter a degradação ambiental e promover o bem-estar social, gerar renda, possibilitar a inclusão e garantir o acesso a bens e serviços básicos.

O segundo princípio sinaliza a importância de se incorporar os negócios como um dos protagonistas da Amazônia. A ampla participação das corporações que movimentam o grande capital e são responsáveis pelas principais transformações desse território é fundamental para essa rede. Existe também a necessidade de se revisitar as regras do jogo, as tácitas e as não tácitas (formais).

As Amazônias devem ser institucionalmente regidas com base na proteção e na conservação de recursos naturais aliadas ao respeito e à valorização da riqueza sociocultural das pessoas que ali estão. A partir das regras do jogo, é preciso definir sistemas de governança, ou seja, como a região é governada nos âmbitos municipal, estadual, federal e internacional. Também é preciso definir um pilar sustentado pela cultura, alicerce que funciona como fonte de informação complementar ao conhecimento científico e para que todos esses elementos falem entre si. A cultura é transversal, dinâmica, ela é a teia e o elo.

Foi nesse momento que as abordagens se encontraram. As sutilezas da dimensão cultural, ligadas aos diferentes modos de vida, de fazer e de representar um território, foram trazidas para a rede a partir da abordagem da paisagem, capaz de garantir uma presença transversal do componente regional, sofisticando ainda mais o processo ao incluir uma forte participação social. Esses novos integrantes questionam caminhos e enriquecem princípios, trazendo maior assertividade para as ações.

As ações da Concertação concretizam-se principalmente a partir de uma articulação liderada pelos subgrupos temáticos de trabalho. Esse subgrupos acolhem, lapidam, orquestram e implementam aquilo que fizer sentido para alcançar o objetivo maior desenhado pelo grupo, seguindo os princípios advindos dessa ampla discussão. Os subgrupos de trabalho funcionam, em menor escala, como a própria Concertação, portanto com o apoio das duas abordagens aqui apresentadas. Alguns deles se formaram na rede após a incorporação da abordagem da paisagem pela Concertação. Nesses casos, houve um cuidado em trazer os aspectos culturais e uma maior sensibilidade para as discussões e ações que apareciam desde o início do grupo.

As expectativas, mais ou menos formais e explícitas, acompanhadas de ansiedade pela realização concreta de ações, é comum a esse tipo de movimento – e na Concertação não foi diferente. Por isso, uma crescente eficiência em todas as fases é importante para evitar que os movimentos se esvaiam e se enfraqueçam.

Racionalidade limitada e a abordagem da paisagem

Por serem formadas por pessoas, outra característica comum a esse tipo de articulação é o fato que se ela assenta sobre o conceito de racionalidade limitada. A teoria da racionalidade, criada na década de 1950 por Herbert Alexander Simon diz que o processo cognitivo humano é limitado e, por isso, incapaz de tomar decisões perfeitas, ótimas. Ou seja, para não haver resultados sub-ótimos é preciso acrescentar sensibilidade, ultrapassar a racionalidade, e trazer os desejos e sonhos para conversar com os aspectos técnicos e científicos. Nesse sentido, integrou-se a abordagem da paisagem.

Essa abordagem consegue lidar com as dicotomias entre o técnico e o sensível, entre o natural e o social; o rural e o urbano, o passado, o presente e o futuro. A paisagem é definida como uma imagem construída por um observador de uma porção de espaço. Enxergar o mundo por meio das paisagens significa enxergar tanto os elementos que ali estão, visíveis, quanto a relação entre eles e a relação deles com o observador, ou melhor, com os observadores.

Eis uma das chaves para ultrapassar os limites da racionalidade: a formação de um painel multivariado de sujeitos que trazem diferentes informações sobre um mesmo espaço, de acordo com a relação que cada um tem com esse espaço e de suas respectivas histórias de vida e experiências.

Formalizar a existência e a permanência de um pilar sensível, voltada a garantir que em todos os espaços e ações da Concertação estejam presentes também os pontos de vista de quem é do território, através de uma maior participação social local e da arte, significa incrementar o método que está por trás de todo esse processo de movimentos em rede. Significa somar às fases do processo uma robustez metodológica, na tentativa de trazer mais eficiência para a inciativa.

As dimensões tempo, espaço e pessoas baseiam essa abordagem: como as pessoas, ao longo de um tempo, interagiram e interagem com um determinado espaço e como elas percebem os resultados dessa interação. Esse resultado, seja ele visível, material e quantificável, seja percebido, sonhado e emocionado, é revelado através de diferentes pontos de vista sobre a mesma paisagem.

De um lado, a ciência e a técnica, que analisa o que é visível, material, o que está em dados. De outro, a comunidade local, que apresenta os seus quadros de vida. E, por fim, as artes, que representam de diferentes formas essa paisagem, transbordando nas obras emoção e sentimentos mais ou menos coletivos. O resultado é um instrumento de contextualização que integra dados existentes com desejos e percepções buscando um alinhamento de expectativas e possibilidades.

Do ponto de vista espacial, a Concertação definiu sua área de atuação como sendo a Amazônia Legal. Já como horizonte temporal, na maior parte das vezes a referência são algumas décadas passadas (de 1970, quando houve um maior fluxo de migrações para a região), e algumas futuras (2030, para quando a região tenha condições de alcançar um patamar maior de desenvolvimento econômico e humano e atingir o uso sustentável dos recursos naturais). Mas se percebem também algumas idas e vindas mais longas, quando se viaja até a pré-história da Amazônia, recuperando os elementos da formação da própria floresta, da relação histórica da floresta com as comunidades humanas etc., ou se chega a um futuro mais distante, vislumbrando as possibilidades e potencialidades de uma bioeconomia 4.0, por exemplo.

Essas idas e vindas no tempo e no espaço, possíveis graças à uma base metodológica existente, testada e eficiente, são muito enriquecedoras para o sucesso dos movimentos em rede. A possibilidade de enxergar e lidar com o mundo a partir da paisagem concretiza-se em um olhar sistêmico e transdisciplinar.

Falamos de espaço e de tempo. Mas é na terceira dimensão – as pessoas – em que a abordagem traz algo completamente disruptivo. As pessoas que integram a Concertação não são apenas aquelas que participando movimento em si. A abordagem da paisagem traz também as comunidades locais por meio de histórias de vida e de sonhos, muitas vezes traduzidos e interpretados pela arte. Toda essa sensibilidade tem efeito muito importante no desempenho (Performing), pois garante espaço para a riqueza sociocultural que é tão forte nas Amazônias, seja pelas suas heterogeneidades, seja pelas especificidades.

A dinâmica dos movimentos em rede aceita as injeções que a abordagem da paisagem traz, através de um olhar sistêmico, em todas as suas fases, enriquecendo o processo. Quando isso acontece, as conexões ganham força, novos atores são continuamente adicionados, o movimento adquire a elasticidade necessária para um incremento em seu desempenho. Por ser pautada na relação do homem com a natureza, parece ser um desenho de longo prazo que funciona muito bem para lidar com o desafio da mudança climática e com a própria existência/permanência dessa floresta e das pessoas que lá vivem.

*Fernanda Rennó é consultora do Instituto Arapyaú; Renata Piazzon e Thais Ferraz são diretoras; e Roberto S. Waack é presidente do Conselho. Todos integram a iniciativa Uma Concertação pela Amazônia

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